top of page
Foto do escritorPriscilla Nogueira Castro

Autismo e o mutismo seletivo

Atualizado: 30 de nov.


Olá Autistares, peço perdão pela minha ausência. Mas, em minha defesa, ela não foi descabida. Passei por perdas sentimentais significativas nos últimos 15 meses, mas vou direto pra parte em que usufruímos juntas de mais um texto sobre nós mesmas: Mulheres Adultas Autistas. Logo, espero que aproveitem a leitura sobre um tema que julguei relevante nesse meu "retorno" à escrita!

 

Uma Autista que fala nada, pouco e muito


Sim, temos uma Autistar assim! Existe uma característica de comunicação na Mulher com Autismo (mas não exclusivo desse gênero) que ela pode ser calada (tímida demais), falante (ou com taquilalia) e ainda gravar longos áudios ou fazer textões sobre um tema que seja seu hiperfoco. Estou falando do Mutismo Seletivo. Uma condição em que se mede cada palavra, em que cada som que sai de sua boca é medido. Essa medição obedece critérios particulares do portador, nada universalmente aceito. Essa medição, é feita por um conjunto de padrões criados cuidadosamente pela Autista, como se ela tivesse construído uma "fita métrica" que medisse todas as palavras que ela fala, até mesmo o volume.

O Mutismo Seletivo é uma condição de adaptação da Autista em uma sociedade dominada pela verbalização como forma de Linguagem. Como a Autista não consegue escapar dessa demanda constante por sua fala, ela concilia suas internalizações e exteriorizações exigidas por meio do Mutismo Seletivo.

Para aquelas autistares que nunca ouviram falar sobre, trago aqui uma referência de uma Autista que admiro muito, que possui Mutismo Seletivo, é ativista ambiental e foi eleita personalidade do ano pela Revista Time em 2019, Greta Thunberg. Aqui está o que Greta diz sobre seu Mutismo Seletivo:

"Basicamente, isso significa que eu só falo quando é necessário. "

O Mutismo Seletivo é uma condição psicológica que leva seu portador a ter dificuldades de se expressar por meio da verbalização, onde criam normas e "regulações" de seu comportamento de fala. Greta foi diagnosticada com essa condição aos 11 anos de idade. Como tenho Mutismo Seletivo e só descobri recentemente, vou listar aqui as minhas características, aquelas que deu tempo de eu me tornar consciente de que elas eram parte dessa condição, pois até então, eu pensava que toda Autista era assim. Caso a leitora se identifique, leve ao conhecimento de seu Psiquiatra ou Psicólogo e analisem sobre isso, é uma parte de você muito significativa que não deve permanecer oculta.


Meu Mutismo Seletivo se manifesta da seguinte forma


  1. Fala com sonoridade linear: pouca ou nenhuma síncope, fala com mesmo tom do início ao fim, de aspecto monótono, melódico, excessivamente rítmica, muitas a conhecem como "fala robótica".

  2. Fala excessivamente direta: como o sacrifício de verbalizar é alto, quanto mais rápido terminar a comunicação, melhor para mim. Isso pode fazer com que seja interpretado como frieza, egoísmo, falta de empatia ou déficit em Teoria da Mente. Mas, é só seletividade mesmo, senão entro em crises de ansiedade no meio da fala, gerando traumas que ainda estou superando, minha força de raciocinar é vencida pela tentação de fugir mentalmente da conversa, engasgo, perco a fala ou fico imóvel diante de perguntas. Enfim, uma bola-de-neve.

  3. "O imperativo da fala": somado ao autismo, eu só consigo destravar a fala em assuntos que entram dentro dos meus hiperfocos. Sendo assim, é como vencer toda "preguiça mental" e qualquer prazer supremo de entrar em meu interior e, assim, emitir minha opinião com muita profundidade, paixão e perfeccionismos por minutos ou horas. É realmente algo absurdo que até um ano atrás eu não conseguia explicar dentro do Autismo. No entanto, após saber que tenho "Mutismo Seletivo", tudo fez sentido, porque para algumas pessoas muito íntimas eu sempre fui muito expressiva, algo que as fazia negar o Autismo em mim. No entanto, essas pessoas só me conheciam dentro de onde habitam meus hiperfocos. As pessoas que me conheciam fora de onde habitam meus hiperfocos, sempre reclamaram de minha falta de interação social. Ao mesmo tempo que era possível enxergar duas de mim pelas pessoas que me viam fora e dentro dos ambientes de meus hiperfocos. Tão contraditório, mas totalmente explicável, certo?

  4. "Não posso falar enquanto faço outra coisa, desculpe": como eu desconfio que alguma parte do meu córtex frontal perde seu funcionamento normal quando eu falo algo, então aprendi desde a infância que era melhor não me sobrecarregar com outras tarefas se eu quisesse falar algo. Com um tempo, outras estratégias viriam, como a ação de saber reconhecer a pessoa certa com quem falar e sobre o que falar com ela de forma que a comunicação seja mais eficiente ou rápida, me poupando energias escalares. Então, é comum que quando eu me engaje a falar sobre algo dos meus hiperfocos eu também não olhe nos olhos das pessoas e perca outras funções referente à tomada de decisão ou memória. De forma que já se tornou comum eu perder sacolas com itens de loja apenas porque dialoguei uns cinco minutos a mais com o lojista. Perder celular ou itens em salas de reunião em que eu tive que expressar uma opinião para colegas. Realizar atividades com algum erro ou perder concentração/memória apenas porque, naquele dia, fiquei mais de dez minutos conversando com alguém. Ficar com dificuldades de andar ou de movimentar o braço, por fadiga excessiva ou dores após intenso bate-papo em grupo.

  5. Dirscurso "egóico" ou apressado: muitas vezes me esqueço das interjeições de entrada ou de verbalizar minha empatia com quem me ouve, logo, frases como "bom dia", "como vai?", "por favor", "sinto muito", "desculpe" são facilmente engolidas e vou para a parte que mais me interessa. Ainda que as interjeições para os Neurotípicos não signifiquem expressão de empatia, sequer representem algum significado, apenas formas de "marcar presença na comunicação", "entrada", "saída" e muitas vezes nem sejam suficientes para comprovar que ali teve uma comunicação. Ainda assim, quem se esquece de tais interjeições é visto como egóico, vaidoso, desinteressado em se comunicar (lamentável, mas é essa a realidade Neurotípica, onde nada é TUDO). Logo, esse comportamento não consegue significar ausência de empatia ou falta de educação, apenas que se eu verbalizar tudo isso, talvez eu não consiga concluir todo o discurso, FIQUE SEM VOZ.

  6. "O Principal é inegociável": como meu cérebro "se desliga" facilmente durante uma interação social, correndo o risco de eu não entender NADA do que estão falando comigo, tendo a coletar apenas as informações-chave da conversa. Logo, é comum que eu responda aos principais tópicos da conversa e desconsidere outros, algo que pode ser considerado pelas pessoas como uma conversa intimidadora ou antipática. Também pode levar a distorções de entendimento meu.

  7. "Menos é Mais": sempre ouço mais do que falo. Não porque eu queira, porque muitas vezes eu estou ali, ouvindo, mas desejando estar sozinha, em minha humilde casa, me curtindo de alguma forma ou quero apenas estar passivamente ali, sem entrar como personagem do discurso. Mesmo quando sinto que gostaria de falar, uma "preguiça" mental se apossa de mim, e penso "agora não, melhor poupar energia para uma frase que eu seja obrigada a emitir alguma comunicação"

  8. Assessorando uma comunicação em grupo: como criei estratégias para evitar e manter uma fuga dos "palcos do discurso", eu acabo sendo nomeada por aqueles que estão conversando comigo como uma "assessora" da comunicação que está posta ali. Então, aceito o papel de mediar conflitos entre as falas, resumir raciocínios, simplificar entendimentos ou evitar que a conversa saia do seu foco principal. Assim, me sinto útil zelando pelo ecossistema da comunicação grupal sem ter que me expressar verbalmente com eloquência.

  9. "Te acho Falsa": Autistas com Mutismo Seletivo costumam falar intensamente, vigorosamente ou são prolixas em casa ou com pessoas mais íntimas em quem confiam muito, virtualmente ou não. Mas, fora de casa ou próxima a pessoas das quais não possuem intimidade ou não possuem alto grau de confiança, não falam nada, "abaixam o volume", se inibem ainda que perto de pessoas mais íntimas ou em quem confiam. Sendo assim, são frequentemente associadas a pessoas falsas, dissimuladas, fazendo "birra social" proposital, petulantes ou com um indício de depressão. Não me preocupo se sou ou serei intitulada como falsa (até porque ninguém nunca me explicou claramente o que é ser falsa), mas tenha certeza que se você fosse alguém altamente confiável pra mim, estivesses perto de pessoas que também confio e que o assunto estivesse dentro do meu hiperfoco eu teria me expressado contigo.

  10. "O salto do elétron": do nada minha voz pode surgir e ser dificilmente calada ou negligenciada. Pela Seletividade, acabo sendo impetuosa verbalmente, perfeccionista nos argumentos. Sendo assim, de alguém excessivamente caladinha, dou um salto de perfomance verbal. Um ímpeto, como se uma barreira de contenção se abrisse e deixasse desaguar tudo o que estava preso. Talvez esse impulso para quem quase não fala nada, assuste os que estejam ali presentes e digam que sou outra pessoa, que virei outra pessoa, que minha sinceridade feriu os sentimentos de alguém, mas quem não se assustaria com uma bomba caindo a 1 quilômetro de si num dia comum e calmo? Pense, que será normal esperar isso de uma autista com Mutismo Seletivo: a surpresa, uma vez que essa pessoa só ouvia você e agora, quer falar. Também é comum nos emocionarmos de repente durante a fala ou sem termos falado nada, o que chamam de "chorar do nada", podendo ser interpretado como uma emoção mentirosa, dissimulada. Esse ímpeto e perfeccionismo pode ser acentuado se você tiver Transtorno Obsessivo Compulsivo, Transtorno de Déficit de Atenção ou Altas Habilidades/Superdotação (Dupla-Excepcionalidade).

  11. "Escapes mentais ou Jogos mentais?": quando há acentuação da ansiedade social (por algum motivo que você ainda não controle), o Mutismo Seletivo pode ser uma bomba relógio, pois daí você não consegue emitir palavras alguma, mesmo com os mais íntimos. Me parece uma crise de Shutdown que te faz desistir de "ser humano" e de conversar com qualquer "humano" da face da Terra, chego a bloquear as chamadas telefônicas de minha mãe (que por sinal, é minha melhor amiga) e me aproximo mais dos meus gatinhos ou de meu Palácio Mental. Acho que não quero que ninguém me veja gaguejando, engolindo frases ou palavras, ficando imóvel diante de uma pergunta... não quero ser debochada novamente, não quero ser envergonhada, até mesmo diante dos mais íntimos e dos mais confiáveis pra mim (quem quer isso, afinal?). Então, todas as vontades de emitir opiniões verbais acumulam-se porque existe uma "mão invisível" dentro do meu cérebro, brincando de embaralhar todas as palavras, transformando-as em imensas palavras-cruzadas. Tudo o que eu não consegui verbalizar fica preso em minha mente, indo e voltando repetidamente em imagens e remontando os cenários para que eu possa verbalizar o que faltou; mas, já não há ninguém ali pra ouvir. Pessoas com Transtorno Obsessivo Compulsivo ou Altas Habilidades/Superdotação (Dupla-Excepcionalidade) podem ter tudo isso acentuado.


Mutismo Seletivo junto com o Transtorno Obsessivo Compulsivo


Parece que eu escolhi uma Autista certa para admirar! Greta Thunberg também confessou ser portadora de Transtorno Obsessivo Compulsivo, algo que, em meu ponto de vista, levou a esse pragmatismo e insistência irresistível ao seu hiperfoco: as causas ambientais. Ela conta que, ainda criança, matava aulas pra ficar assentada nos degraus da Escola segurando um cartaz " Em greve Escolar pelo Meio Ambiente". Hoje, a palestrante na ONU e mundialmente conhecida já foi várias vezes presa por sua insistência em "causar incômodos propositais" para que o mundo reanalise questões sobre subsídios a Combustíveis Fósseis.

Tudo isso eu contei para as leitoras para que vissem que é difícil ver fotos da Greta em que ela sequer abre a boca. Para mim é algo lindo de se ver, como que a Comunicação vai muito além da Linguagem?

O Transtorno do Espectro Autista é conhecido pelo seu comprometimento severo na Linguagem em comparação com Neurotípicos. No entanto, Linguagem é algo altamente simplificado perto da grande densidade lógica existente em uma Comunicação. Logo, não quer dizer que você tenha uma Linguagem "não-Neurotípica" que você não se comunique melhor que um Neurotípico, eu estaria certa, cara leitora?

Pelo histórico de Greta, algo me diz que eu posso estar certa!

Quando o Transtorno Obsessivo e Transtorno do Espectro Autista estão associados ao Mutismo Seletivo, pode ser algo pra lá de assertivo.

Vou te dizer onde pode ser assertivo:


  1. Profissões ou atividades em que se exige mais ação e menos palavras, como o próprio ativismo: ter um repertório seleto de expressão verbal, comportamentos intensos e altamente concentrados possibilitam maior sucesso que Neurotípicos


  2. Profissões ou atividades que exigem alto controle verbal e alinhamento intenso, contínuo e restrito com metas e objetivos: não poder fugir do foco/objetivo traçado, concentrar-se excessivamente em detalhes, encontrar "pontos-cegos", encontrar erros e falhas e saber comunicar isso de forma objetiva, como trabalhos em Auditoria, Controladoria, Consultorias, Assessorias.


  3. Profissões ou atividades de Mediação de Conflitos desde que não exijam alta exposição social e que estejam alinhados ao hiperfoco da Autista


Algumas são parecidas com Isócrates


Na Grécia Antiga, um orador e retórico ateniense chamado Isócrates, se destacava por falar apenas quando necessário. Ele era conhecido por habilidades excepcionais na escrita de discursos, tanto que defendia que a escrita salvava a reflexão, a deixava profunda. Ainda assim, preferia não orar em público, pois para ele o discurso público poderia ser mais impulsivo.


O verbo 'Mutar' vem de retirar o volume, cuja palavra "Mutismo" deriva. O fato de ser 'seletivo', entendemos que o traço em comum é a perda do volume verbal de expressão. Ocorre que nas autistas verbais com essa condição, a verbalização vem de forma "seletiva", medindo a precisão e quantidade de cada palavra como numa fita métrica. Os episódios de seletividade não vem em períodos de 'shutdown', nem tendem a ocorrer em episódios, as autistas com Mutismo Seletivo nasceram com 'volumes' que reduzem ou aumentam em momentos com características comuns. Isto é, em casa o 'volume' aumenta e na 'rua' o volume reduz/desaparece até mutar. E a "cereja do bolo" é que quando é preciso, a autista irrompe o 'volume' independe de onde esteja em razão do interesse que ela tenha pelo tema falado, o que denominei de "salto do elétron", que é o nome dado a um fenômeno da Física quando o elétron acumula energia suficiente para 'gastar' no momento certo, naquele momento em que ele encontra o lugar no átomo em que ele sempre 'sonhou' em estar; daí ele usa essa energia acumulada de tanto tempo de espera para comprar uma passagem para esse lugar da qual sonhou e que finalmente está bem a sua frente. Nesse fenômeno da Física, o elétron 'desaparece' de um lugar do átomo e 'reaparece' instantâneamente no local que sonhava estar. Nada diferente das Autistas com Mutismo Seletivo.


Querida Autistar, sou muito grata por você ter chegado até aqui na leitura!




Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page